"Séculos e séculos de uma visão masculina da vida, do poder, cimentaram em nós, mulheres, crenças que ainda hoje nos diminuem a condição. Crenças profundas que nos foram afastando do poder de ser mulher."
“É muito tempo a desejar o tempo
De mudar ventos, levantar marés
É muita vida a desejar o alento
Que faz saber ao certo quem és…” Outra Margem
de mim – Mafalda Veiga
A relação Feminino/Masculino é
universal. Os antigos conceitos chineses yin/yang, são princípios gerais, representações
simbólicas das energias presentes na natureza.
Yang – elemento criador, gerador,
energia iniciadora, impulsividade, agressividade, ordem, exterior, consciente,
intelecto, força.
Yin – elemento receptivo, dócil, interior,
envolvente, natureza, inconsciente, mente intuitiva, cooperante.
Toda a manifestação no mundo é
dual, dividida. Em nós também.
O ser humano é um sistema
constituído por várias partes e tudo tende novamente para a união, para que se
torne uma totalidade em nós. Esta totalidade em nós é o processo que Jung
chamou de Individuação. O caminho de Ser um Indivíduo, de Ser Inteiro, Uno, Não
Dividido. Um processo arquetípico que nos permite ser … Mais. E o caminho do
Homem é este. A transcendência do dual, a reconciliação dos opostos, os
contrários que se juntam, a síntese. A noção de Anima, como a parte feminina
presente no inconsciente do homem e Animus, como a parte masculina presente no
inconsciente da mulher é, em Jung, a representação destes opostos em nós. Opostos
que criam tensão.
No entanto, dentro de nós,
mulheres, a tensão não é apenas vivida entre feminino e masculino. A tensão é
também vivida entre os vários arquétipos femininos. Vivemos numa sociedade onde
historicamente há uma supremacia do elemento masculino sobre o elemento
feminino, vivemos numa sociedade patriarcal. E por isso pergunto: Que Anima?
Que feminino? Será que a Anima em nós mulheres é assim tão consciente? Ou será
que a verdadeira Anima, a Deusa, mulher integrada, inteira, o feminino
profundo, está fragmentada e desligada da mulher dos nossos dias...?
Séculos e séculos de uma visão
masculina da vida, do poder, cimentaram em nós, mulheres, crenças que ainda
hoje nos diminuem a condição. Crenças profundas que nos foram afastando do
poder de ser mulher. Crenças que nos foram aproximando deste conceito yang de
poder. E são os valores femininos que fazem profundamente falta na nossa
sociedade. Ainda há pouco tempo li um artigo no Público on-line sobre um livro
de Steven Pinker (psicólogo da Universidade de Harvard e antigo subsecretário
da Defesa dos EUA) onde o autor defende que se o mundo fosse governado por
mulheres seria mais pacífico. Os homens “tendem a escolher a força do comando,
enquanto as mulheres são mais pacificadoras”. Os mais cépticos falam do exemplo
de mulheres que já tivemos e temos no poder… esquecem-se que essas mulheres
continuam a actuar segundo valores masculinos.
Olhando para os mitos como
representações puramente simbólicas dos vários femininos que estão impressos em
nós, encontramos na base da sociedade ocidental como exemplos femininos a
modelar, Eva e Maria.
Eva
Mulher de Adão, criada a partir
de uma costela do primeiro homem para ser sua companheira. Trouxe o pecado ao
mundo e levou Adão a pecar. Cedeu à tentação, à serpente. Culpada pela expulsão
da humanidade do Paraíso, carregando o estigma do pecado, impureza, fragilidade.
Eva, a mulher submissa, que tem a sua identidade e existência ligadas a Adão,
ao homem.
Maria
Em Maria temos a mãe de Jesus,
Cristo salvador da humanidade. Maria engravida do Espírito Santo ainda sendo
virgem. Maria é mãe e virgem, atribuições que remetem para a mãe perfeita,
assexuada, pura como todas as mães deveriam ser. Maria, mãe simbólica da
humanidade que vem redimir os pecados de Eva.
As duas, Eva e Maria, têm em
comum o facto de serem validadas na sua existência pela sua relação com o
masculino. Uma é assexuada, a outra, culpada pelo pecado original.
Depois….
Lilith. Vive nos confins sombrios
do nosso inconsciente colectivo. Quem é Lilith?
Lilith aparece na tradição
rabínica de transmissão oral, no folclore hebraico, em textos cabalísticos... O
alfabeto de Ben Sirak é o registo mais antigo que se conhece sobre Lilith. Existem
várias versões de Lilith e aparece em várias culturas.
Lilith é descrita como tendo sido
a primeira mulher de Adão. Em alguns escritos Lilith e Adão eram o hermafrodita
que Deus separou em duas metades, feminina e masculina. Noutros, Lilith é criada
por Deus da mesma forma que Adão, ou seja, moldada pelas mãos divinas, só que a
partir de lodo e lama. Com o tempo, Lilith torna-se rebelde e não se conforma
em estar numa posição inferior à de Adão, já que ambos tinham sido criados à
imagem e semelhança de Deus. Inclusive, na relação sexual, Lilith não se
conforma em ser submissa. Diz-se que Lilith e Adão viveram uma verdadeira
paixão, que ela o tirava do sério. Lilith entra em conflito com Adão e com o
Criador. Por isso, tem de escolher entre submeter-se ou partir exilada para o
Mar Vermelho, onde vivem os demónios. Lilith escolhe partir. O seu castigo é
tornar-se um demónio, a rainha da noite.
É a partir daqui que Deus cria
Eva, para acabar com a solidão de Adão.
Lilith representaria assim a
mulher independente, que sabe o que quer, que não se envergonha de si própria, activa
sexualmente. Enviada para o inconsciente como demónio, ali ficou como sombra. Acusada
de todos os males e tentações. Em alguns escritos Lilith é a própria serpente
que tentou Eva. Demónio nocturno que vinha tentar os homens, matava crianças,
gerava demónios. Acusada de encarnar na mulher que ousava ser diferente e pôr
em causa a ordem - a bruxa, queimada.
Das sombras todos temos medo. E
assim, como sombra e sombria, reconhecemo-la pela negativa – é a mulher fatal,
a amante, a tentadora perversa. É a representante de impulsos sexuais reprimidos.
Mas… não poderão Maria, Lilith e
Eva coexistir na Mulher? Em pleno século XXI, não será tempo de tirar Lilith da
sombra e dar-lhe luz? Até quando será convenientemente demónio?
Não nos poderemos nós rever na doçura
e companheirismo de Eva, no amor incondicional de Maria, e ao mesmo tempo
ganharmos espaço criativo para a nossa própria expressão enquanto e como
mulheres, levando activamente os valores femininos ao mundo? Mudando o mundo.
Não poderemos nós ser mães, companheiras, amantes? Em que é que a nossa
independência e vivência sexual nega os valores femininos? Os valores femininos
só são negados quando procuramos ser yang na nossa expressão.
Haverá sempre Marias felizes,
Evas felizes, Liliths felizes. No entanto, para as que sentem o vazio, a
insatisfação com os papéis que decidiram ou decidiram por elas assumir, não
será a integração, assumir o poder feminino na sua totalidade, ser mulher
inteira, a Deusa, o caminho ou pelo menos parte dele?
Hoje deixo-te apenas uma
pergunta:
Se não tivesses que ser nada,
quem gostarias de ser? Quem poderias ser?
Vera Braz Mendes - Publicado Sapo Mulher
Vera Braz Mendes - Publicado Sapo Mulher
Muito obrigada por postar isso, me ajudou em uma pesquisa que estou fazendo sobre arquétipos femininos. Não tive a oportunidade de ler todo o texto, mas salvei nos meus favoritos para que eu possa ler tudo depois.
ResponderEliminarAbraços
Tami
(tive que deixar em anônimo pq estavam pegando o pé com a minha URL, rs)
Isto é maravilhoso.
ResponderEliminarPorque acordo todos os dias com este dilema... não se sou Eva, Maria ou Lilith (porque se calhar sou todas) Mas como posso ser e afirmar-me como MULHER? Como posso afirmar o meu direito à igualdade perante os homens, mas afirmando o meu direito a ser diferente porque sou mulher? ADOREI!
Rita
Para quem tem a Lilith, lua negra, na casa 8, em Aquário, este texto vem todo a calhar!!
ResponderEliminarMaravilhoso Vera!
Beijão. Agradecido sempre.
Astrid Annabelle
Obrigada a todas pelos comentários.
ResponderEliminarExcelente texto e trabalho vera. Adorei, é um tema lindo e muito pertinente. Bjinhos
ResponderEliminarMuito bom! Obrigado ❤
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